sexta-feira, novembro 18, 2005

Carta da insanidade do sonho...

Caro amigo,

Venho falar-te de um homem excepcional...
Pode encontrá-lo amiúde na zona da rua Augusta e da Praça da Figueira, onde tantas conversas tivemos nas esplanadas, e de onde te escrevo esta carta sem remetente.
Esse homem vive, sem vergonha, do que pede e dos recados que faz aos logistas dali, que confiam nele porque de facto é um homem fiável.

Sobre a sua condição diria que se vendeu à miséria a troco de sonhos e artes... Os favores que faz não os cobra ele, apontando, para tal, sempre a sua disponibilidade de tempo - o que não estou certo de que seja inteiramente verdade, pois que escreve, escreve continuamente, como se escrever fosse nele uma doença obsessivo-compulsiva a que não resiste -, contudo é raro o café aqui onde não encontre a bica paga, uma refeição, um pequeno lanche e até mesmo um maço de tabaco. São estes os rendimentos que fazem a sua minimalista contabilidade, apesar de ter enraizado em si um certo pudor em receber ofertas.
Não foi um homem de particular sorte ao que julgo, e sempre soube dar melhor do que soube receber. Ainda que muitas vezes tivesse dado de uma forma embaraçada e desajeitada e ninguem tivesse percebido o valor real. No entanto essas oferendas que agora aceita, luxos que o animam a manter a sanidade mental que aos olhos dos amigos - antigos, devo ressaltar - e familiares parece ter perdido.

É na verdade um homem lucido, ponderado no falar. O que continua a fazer pausadamente de uma forma lenta, um pouco desconcertantemente para a sua pouca idade, vinte e oito anos apenas, sem aparentar um unico dia a mais.
Perante o falar cuidado, o vocabulario variado percebe-se rapidamente que é um homem instruido. Suponho que seja por isso que acontece muitas vezes, durante um primeiro contacto, perguntarem-lhes porque leva aquela forma de vida e que passado teve. A sua resposta é lenta, reflectida, apesar de na verdade ter pensado nela apenas da primeira vez em que lhe colocaram a pergunta. Desde então repete o mesmo, mas como quem sente o mesmo, nunca como quem debita palavras, confessa que foi "algo de turvo que ficou para trás do que sou... E o que faço aqui...? bem... por aqui por aqui faço o que fui e sou - viajo e escrevinho poesia..." Há uma autoridade nas suas palavras que impossiblita o continuar do assunto.

Apesar disto ainda no outro dia alguem perspicaz ou meramente perdido na resposta perguntou-lhe "como assim? mas por onde viajas tu?!". Ele sorriu - tem os dentes amarelados pelo tabaco, apesar de manter intacta a sua higiende pessoal - entregou ao homem mais baixo de aspecto tenso e pesado, três ou quatro folhas manuscritas com poemas, desconcertando-o.
Enquanto o homem passava os olhos atrapalhado pelo q tinha em mão e sem lhe dar tempo para recompôr-se, murmurou levemente "por onde qualquer escrevinhador de poemas viaja: por dentro de mim... é um mundo fantastico... e... uma viagem que todos podem fazer...", piscou misteriosa e intimamente o olho ao homem num desafio silêncioso e sem mais desapareceu na multidão que, naquela hora de ponta, descia em direcção ao Terreiro do Paço. Ali onde o vinte e cinco de Abril também foi feito.
Ele gosta, por vezes de sentir o passado impresso nas paredes enquanto a brisa se ergue do rio e lhe acaricia o rosto...


Caro amigo, meu pai, conheces bem este episódio de que te falo agora, tão bem quanto eu...
Perdoa a falta de humildade com que refiro esse homem que sou como um ser excepcional... mas sei que se não o disser, senão o repetir exaustivamente tu nunca o farás, e talvez nunca o perceba...

Querias talvez nesse fim de tarde que eu recorda-se a tua posição de respeito, dono de uma construtora a mesma onde trabalhei, certamente demasiado bem pago por ser teu filho, porque um bom engenheiro civil eu nunca fui, nem sei ser...

Queria apenas, caro amigo, queridissimo pai que percebesses que tive de rasgar a mascara, ela que me pesava tanto enquanto eu beirava a loucura, no esforço de a manter sobre o meu rosto.
Despedi-me desse homem que fingi ser e recuperei-me, e junto comigo algo de indizivel, inominável... algo que nem eu sei o que é, mas que permaneceu inolvidável por baixos de todas as mascáras que usei. E resta ainda, intacto, neste homem de que te falo, que digo excepcional, que encontraste falhado um destes dias...
Mas eu quero apenas que percebas que falhado sim, mas também excepcional homem, que ainda te ama e considera o mais caro dos amigos, o mais querido dos pais...

15 de Novembro, de 2005