terça-feira, maio 09, 2006

Nesta madrugada...

Fiquei presa a esta madrugada, sonhadora de mim e de todos aqueles que já compuseram outras madrugadas.
O café, bem quente como gosto, acabei de o fazer, no silêncio da noite e da minha casa.
Revivi, durante alguns momentos, tantos sentimentos que ocorreram em mim, nos últimos anos.
Não gosto de falar de mim. Gosto de falar daquilo que gosto.
Gosto de Poesia, daquela poesia que nos enche a alma e nos faz vaguear por mundos de sonhos, de risos, de lágrimas...
Porque este não será nunca um blog estanque, trarei aqui todo o tipo de poesia com a qual me identifico e os seus autores.
E, para terminar esta madrugada que vai longa, deixo um autor (para além de outros) que prezo muito.


"O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo"

(Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen)

(memórias minhas...)

domingo, maio 07, 2006

Carta da Insanidade do Sonho... #2


Meu amigo...
Meu tão caro amigo...

Sentei-me e dei por mim a poemar sobre a mesa riscada, sobre as palavras que haviam talhado na madeira.

Parece-me velha a mesa, ainda que suspeite que não o seja. Mas de repente pareceu-me velha e eu surgi perante mim envelhecido, homem de mim mesmo, mas envelhecido...

Por isso volto a falar-te desse homem que sou... deste homem que tal como quis não é ninguem mas tudo quanto sonhou. E no entanto, acordou a meio de um poema e um aperto no peito fê-lo temer que não haja já tempo para que nos conheçamos.

Porque se pode amar sem conhecer.

Porque a nós humanos nada mais resta do que amar o outro sem o conhecer. E o meu peito aperta-se. Esta mão atroz da vida pungente, do desejo de querer tudo... pára-me, meu pai! tudo isto me faz chorar... Porque é normal. Porque é sempre assim, porque sinto que vivemos sempre entre estranhos, mais ou menos proximos.

Olho, contemplador, através destas ruas que escolhi para viver no sonho...

Por vezes num jardim aqui perto, desses bairristas e tradicionais, onde imagino nunca demoraste o olhar, vou ver os velhos que jogam à batota. E há em mim, secreto, este desejo que não me concedo admitir, de te ver um dia no meio deles e talvez então pudesse entrar no circulo cumplice e sentar-me junto a ti, ou mesmo quem sabe, puxar-te para mim...

Escrevo entontecido esta carta. É que de repente a saudade chega toda por junto, pega em nós ao colo e larga-nos numa poça que não é de arrependimento mas de impotência e por isso mil vezes mais dolorosa e lamacenta. Esta impotência de poder contar-te as coisas não como elas são e sempre te contei, mas como as sinto e sempre as enganei.

No outro dia, um homem que teria a minha idade ou eu a dele, caminhava na minha frente de mão dada com o filho e eu dei por mim a interrogar-me - nem sei bem porquê ou com que necessidade ou talvez por isso mesmo, porque vivo sem motivos, segundo a segundo, apenas esta urgência de viver as minhas leis, penetrar no meu universo, cada vez mais denso, mais meu - se falando a um hipotético filho, que não terei, que fosse meu, esse mesmo neto que de certo já desististe de pegar no colo, lhe falaria das coisas como elas são ou como as sinto. Porque um pão é farinha de trigo e água e sal, mas também a noite da cozedura e o calor do forno e o trabalho que ajuda ao sustento de uma familia e o aroma aconchegante que atravessa a madrugada. E eu? Que saberei eu dizer a esse meu filho, que sei de repente, existirá, quando me perguntar o que é um pão?

Deixei arrefecer o café enquanto me ocorria tudo isto, assim, como vagas eternas de um mar inacessivel.

Talvez não saiba o que digo. Talvez esteja condenado a ser sempre aquele filho errado, incorrecto, tanta vez traidor dos teus sonhos, este da vida perdida, este que se perdeu, trocando o certo pelo incerto, a roupa do corpo pela nudez da alma, talvez tudo isto seja o mais certo, o mais verdadeiro, o mais real... Tão real como eu querer saber quem és, sabendo que não te amaria menos por te conhecer, se tu me deixasses agora. Porque é possivel que em algum momento das nossas vidas me tenhas falado no aroma aconchegante e nocturno do pão que cozia em alguma padaria distante e do suor agridoce do trabalho dos homens provocado pelo calor dos fornos e eu tenha visto nas tuas palavras, trigo e água e sal...

E hoje, de certo tardiamente, ofereço-te as minhas mãos abertas, mesmo que nunca leias estas palavras... E nas minhas mãos abertas a ti deposito o meu universo inteiro e este desejo de te explicar as coisas como as sinto, na vaga esperança de que me expliques, como a um filho pequeno, as coisas como as sentes... E nesta vida de desencontros, neste amor a desconhecidos, dêmos por nós, quem sabe um dia, a amar também a nudez um do outro...


by Ar, 18 de Março, 06


Foto:
I Will Follow, de Sérgio Redondo (olhares.com)