sexta-feira, janeiro 12, 2007

Sem mãos...

Hoje que o dia surge sem mãos. Nasce e cresce, aqui como em qualquer outro lugar, onde não encontro, não me encontrarei mais.
Hoje que amanheceu assim, o dia... com a morte no olhar, a rondar-me, no meu olhar e eu choro... não morrer. Ver-me assim, estendida, deitada sozinha no quarto, com a companhia de outras mortas ou esperando a morte como eu, umas adiantam-se outras ficam esperando. Eu fico a fazer-lhes companhia.
Há a luz que entra vinda do corredor, percorre-te a cabeça quando entras pela porta na hora da visita. Já não consigo falar-te. Mas falamos sempre pouco. No tempo em que me batias gritava-te, no tempo em que amavas o meu corpo, gemia-te.
Estás velho. És velho como eu, mas mais lúcido, mais inteiro, a vida ainda não te roubou a força nas pernas, nem a morte te obrigou a semicerrar os olhos para poderes olhar o que ainda existe.
Tu ficarás só, no lugar longinquo onde vivemos os dois - tão longe me parece já. O teu olhar triste, trás já o sabor dessa solidão tardia que ninguem merece no fim dos seus dias. Mas ambos acreditamos em Deus e ele salvará a minha e a tua alma do inferno, num qualquer dia.
Estamos juntos. É o ultimo dia, tu não o sabes, mas és tu quem se vem despedir. Eu sorrio, os meus lábios não se mexem, a cama do hospital é imovel, mais imovel que a nossa cama. Trouxeste-me para aqui ontem, dormi sozinha... Tu não me querias deixar, mas há sempre os senhores de bata branca e o respeito que temos àqueles que julgamos saberem mais do que nós, ainda que não os conheçamos e nos peçam a confiança cega, e que lhe deponhamos nas mãos os que amamos. Saberás que é amor isso que ainda sentes por mim? Eu deixei de te amar. Não sei quando, nem porque incrivel pecado me tornei indiferente a ti. Mas a tua dor, essa da solidão, que podia ser mim, leva-me com um aperto no peito.
Hoje a morte amanhece o dia e morremos os dois, só eu o sei, mais ninguem...

by Ar, 12 de Janeiro, 2007